terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Cidade e qualidade de vida.

Por Frei Betto

Se considerarmos que o ser humano surgiu há cerca de 200 mil anos, a cidade é uma invenção relativamente recente. Durante milênios nossos ancestrais viveram como nômades coletores e, aos poucos, as técnicas de reprodução dos alimentos os fixaram como agricultores e pecuaristas. Havia, naquele longo período – como ainda hoje nas comunidades indígenas tribalizadas – relação direta, e até venerável, entre o ser humano e a natureza. Nossos antepassados se alimentavam sem alterar ecossistemas, biomas, biodiversidade.

Essa relação se altera com o advento das cidades. E um dos relatos mais significativos de como isso ocorreu é o episódio bíblico da Torre de Babel  (Gênesis 11, 1-9), joia literária em menos de dez versículos.

Babel é semantema de Babilônia. Deriva da raiz hebraica “bil”, que significa “confundir”. Narra o texto bíblico que Javé, ao observar Babel, convenceu-se de que os humanos se fechavam em seus próprios e ambiciosos projetos, deixando de acolher os desígnios divinos. “Isso é o começo de suas iniciativas!” – disse o Senhor. “Agora nenhum projeto será irrealizável para eles.”

Segundo o autor bíblico, após o Dilúvio “todos se serviam da mesma língua e das mesmas palavras.” Não havia diversidade de enfoques e opiniões. O ponto de vista de um – o cacique, o chefe do clã, enfim, o poderoso -, era o ponto de vista de todos. E a atividade agropastoril igualava as pessoas.

A invenção do tijolo e da argamassa provoca um movimento migratório do campo para a urbe. Os humanos decidem “construir uma cidade” – Babel.

O versículo 4 registra as propostas de construção da cidade e da torre, e destaca o principal motivo de tal empreitada: “Para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela face da Terra.” Não se tratava de obter felicidade, bem-estar, bênçãos divinas. Importava a fama, possuir um nome sobreposto aos demais, e permanecer segregado, seguro.

A revolução tecnológica representada pelo tijolo (insuperado até hoje) imprime aos humanos a consciência de que não estão mais condicionados pela natureza. A relação se inverte. Agora é o ser humano que condiciona a natureza. Transforma-a em artefato.

Desprendido do ciclo da natureza, o ser humano já não funda sua identidade nos vínculos comunitários da sociedade agrária. Sua consciência se personaliza, ele se torna senhor do próprio destino, livre das mutações ecológicas que antes criavam nele a sensação de fatalidade e de temporalidade cíclica.

Tais avanços enchem os humanos de orgulho. Não satisfeitos de “construir a cidade”, decidem abrir a “porta do deus”, ou seja, erguer “uma torre cujo ápice penetre nos céus”. Aqui o relato expressa duas ambições: a de edificar uma montanha artificial (a torre), repositório da divindade, e a de “penetrar nos céus”, quebrar o limite entre o humano e o divino, o profano e o sagrado, a Terra e o Céu. Já não é a divindade que desce à Terra, é o ser humano que invade o Céu, graças à obra de suas mãos. 

Antes que a soberba humana se inflasse ainda mais, Javé confundiu a linguagem dos habitantes de Babel e os dispersou. “Eles cessaram de construir a cidade.” Portanto, Babel não foi maldição. Foi dádiva. Delimitou a ambição humana e revelou ser obra de Deus a diversidade de pontos de vista e opiniões, contrária à identificação entre autoridade e verdade.

Toda essa sabedoria explica a arrogância decorrente, ainda hoje, de avanços científicos e tecnológicos. Queremos ser deuses. Nossa busca de endeusamento e imortalidade se reflete na babel ou confusão reinante em nossas cidades. Não pensamos no comunitário ou coletivo, pensamos no individual e no lucrativo. 

Assim, nos gabamos de que o Brasil vendeu, em 2010, mais de 3 milhões de veículos automotores, embora isso agrave a congestão metropolitana, a poluição, os acidentes, pela impossibilidade de fiscalizar tantos veículos e abrir tantos espaços urbanos para que se locomovam e estacionem. Não se investe o suficiente em transportes coletivos, assim como não se planeja o espaço urbano, alvo de especulação imobiliária e vulnerável a fenômenos climáticos decorrentes de desequilíbrios ambientais, o que causa enchentes, desabamentos e secas prolongadas.

Hoje em dia, ganha cada vez mais espaço a proposta de bem viver dos povos indígenas andinos, conhecida como sumak kawsay. Sumak significa plenitude e kawsay viver. Não se trata de viver melhor ou viver cercado de conforto. Trata-se de viver em plenitude. 

Plenitude implica fazer da felicidade um projeto comunitário, coletivo. É saber construir relações de solidariedade, não de competição; de harmonia, não de hostilidade; e estabelecer com a natureza vínculos de parceria cuidadosa. 

Para a sociedade capitalista, a natureza é objeto de propriedade e temos o direito de explorá-la e até destruí-la em função de nossas ambições. O capitalismo se norteia pelo paradigma riqueza-pobreza, enquanto o sumak kawsay rompe esse dualismo para introduzir a de sociabilidade e de sustentabilidade, bases fundamentais de um projeto civilizatório. Fora disso, caminharemos para a barbárie.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Um Deus para ateus.

Por Leonardo Boff


Em minha vida tenho encontrado muitos ateus. De vários me fiz amigo. Quase sempre concordo com eles, pois negam um Deus que eu também negaria porque não tem grandeza nem está à altura da busca humana. Por causa deles escrevi um livrinho que considero, pessoalmente, a melhor coisa que já perpretei na minha atribulada existência de teólogo:"Experimentar Deus: A transparência de todas as coisas" (Verus, Campinas 2002). Ai tento deconstruir a categoria Deus e depois reconstrui-la a partir daquelas experiências que permitem falar humana e emocionalmente de Deus, de um Deus que vale a pena e faz sentido.
Mas há uma pré-condição: estar atento a sinais, por onde Deus chega, pois Ele nunca aparece sob o nome Deus. Os poetas e os místicos sabem disso. Por isso, em vez de eu falar, deixo que eles falem por mim. O primeiro é um indígena Cherokee e o segundo, um poeta indignado italiano, mas religioso, David Turoldo, conhecido meu. Vejamos, primeiro, o texto do indígena. Acena onde encontrar Deus.

“Um homem sussurou: 
Deus, fale comigo!
E um rouxinol começou a trinar. Mas o homem não prestou atenção. Voltou a perguntar:
Deus, fale comigo!
E um trovão reboou pelo espaço. Mas o homem não deu importância. Perguntou novamente:
Deus , deixe-me vê-lo!
E uma enorme lua brilhou no céu profundo. Mas o homem nem reparou. E, nervoso, começou a gritar:
Deus, mostre-me um milagre!
E eis que uma criança nasceu. Mas o homem não se debruçou sobre ela para admirar o milagre da vida.
Desesperado, voltou a gritar: Deus, se você existe, me toque e me deixe sentir sua presença, aqui e agora.
E uma borboleta pousou, suavemente, em seu ombro. Mas ele, irritado, a afastou com a mão.
Desiludido e entre lágrimas, continuou seu caminho. Vagueando sem rumo. Sem nada mais perguntar. Só e cheio de medo"
(Cf. JB Ecológico, junho 2002, pg.46).

E agora o poeta italiano com quem me identifico:

"Meu rmão ateu: 
Tu que, ansioso, buscas um Deus que eu não consigo te dar,
Atravessemos, juntos, o deserto!
De deserto em deserto
Andemos para além de todas as florestas da fé,
Livres e nus rumo ao Ser nu.
E ali onde a palavra morre,
Tenha fim também o nosso caminho"
(Canti Ultimi, Garzanti 1993, pg. 205).

E nesse fim, olhando para traz, percebemos que o caminho percorrido, era feito de cumplicidade, de enternecimento e de profundo sentimento de pertença ao Todo no qual estamos inseridos. Nunca estávamos sós. Uma Presença inefável nos acompanhava. Não será por isso que ardia nosso coração? Não seria o advento dEle, do sem Nome, do Nu, do Mistério que nos habita? Estavamos seguros que era Ele, porque já não tínhamos mais medo. Não seria esse um sentido possível do Natal para tempos pós-cristãos?


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A vida quer é coragem.

Publicado no Blog Balaio do Kotscho


Acabei de ler agora um dos melhores livros lançados no Brasil nestes últimos anos: A vida quer é coragem - A trajetória de Dilma Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, escrito pelo jornalista Ricardo Batista Amaral e publicado pela Editora Sextante.

Recebi um exemplar em dezembro e automaticamente eu o coloquei na pilha de livros de amigos que deixo para ler nas férias. O problema é que tenho muitos amigos que escrevem muito e os dias de folga são poucos.

Confesso que não me animei muito a ler o livro de Amaral porque imaginava se tratar de uma história que já conhecia, sem muitas novidades. Fui convencido a lê-lo pelo próprio autor num almoço que tivemos no começo desta semana.

A insistência de Amaral tinha um motivo: foi por indicação minha que ele se tornou assessor de imprensa da então candidata Dilma Rousseff, primeiro na Casa Civil e depois na campanha presidencial. Por isso ele queria saber minha opinião sobre o livro.

Não pude aceitar o convite feito no começo de 2010 por Dilma, com quem havia trabalhado nos dois primeiros anos do governo Lula, para cuidar da área de imprensa na campanha que então começava. Ao terminar de ler o livro, acho que acertei ao indicar o velho amigo, um dos mais competentes e respeitados jornalistas de Brasília já faz muito anos.

Por ter vivido a companha por dentro do início ao fim, pensei que Amaral, mineiro como Dilma, se limitaria a contar bastidores da disputa eleitoral e contar como Dilma chegou lá.

Pois o livro é muito mais do que isto. Ao resgatar, desde a infância, a história da menina de alta classe média de Belo Horizonte, mostrando como era a vida na cidade e no país no começo da segunda metade do século passado, e as circunstâncias políticas que a levaram à clandestinidade e à prisão ao se engajar em organizações de esquerda que lutavam contra a ditadura militar, Amaral escreveu o romance da vida real de uma época.

Como está no título, a travessia de Dilma, da tortura nos porões do DOI-CODI à vitória nas eleições presidenciais de 2010, é acima de tudo uma história de coragem e de superação das dificuldades, em que a nossa presidente se torna o personagem-símbolo de toda uma geração de brasileiros à qual pertenço.

O melhor resumo desta história de quatro décadas, da ditadura à democracia, é uma foto em preto e branco de Dilma, aos 21 anos, tirada em novembro de 1970, durante um interrogatório na Auditoria Militar, no Rio, após ter sido torturada durante 22 dias seguidos.

De cabelos curtos, corpo ereto na cadeira do réu, olhar altivo, não vê a vergonha dos seus interrogadores que escondem o rosto com as mãos. Está na contra-capa do livro, mas deveria ter saído na capa.

Com tantos ingredientes dramáticos, Ricardo Amaral escapou da tentação de tratar sua personagem como heroína, retratando-a apenas como uma cidadã brasileira que teve um destino incomum, sem cair na pieguice ou na louvação, alternando as conquistas, os sofrimentos, os acertos e os erros na vida dela até chegar ao Palácio do Planalto.

A perda do pai aos 15 anos, os amores e desamores na época da clandestinidade, a vida na prisão com outras mulheres torturadas que a reencontrariam na festa da posse no dia 1º de janeiro do ano passado, a luta contra o câncer no ínicio da campanha eleitoral, a "guerra santa" deflagrada por seu adversário no final do primeiro turno da campanha e que quase lhe custou a vitória, o triste papel da grande imprensa partidária, a sólida aliança política e afetiva com Lula, o primeiro presidente operário que elegeu na sua sucessão a primeira mulher _ está tudo lá neste brilhante livro-reportagem de quem testemunhou boa parte da recente história política do país.

Acima de tudo, trata-se de um livro muito bem escrito, coisa rara no jornalismo atual, com uma narativa que amarra o leitor da primeira à última linha, mesmo aqueles que já conhecem parte da história. Posso dizer que o livro me ajudou a conhecer melhor a presidente Dilma e o valor que ela dá à lealdade, mesmo correndo risco de vida _ e por isso a admiro ainda mais.

Este é um livro (são 304 páginas que valem os R$ 39,90 cobrados) que eu gostaria de ter escrito. Não o deixem de ler. É uma história muito bonita que foi muito bem contada. Valeu, xará.

Reproduzo abaixo o parágrafo final do livro para vocês terem uma ideia do que escrevi acima:

Fácil, para ela, nunca foi. Dilma teve de superar todos os desafios que a vida colocou diante dela ao longo do caminho: a condição feminina numa sociedade machista, a militância na clandestinidade, a tortura, a cadeia, a luta tantas vezes áspera pela democracia, o desafio de participar do primeiro governo dirigido por um trabalhador no Brasil, a superação do câncer e uma campanha eleitoral duríssima, em que a candidata estreante enfrentou um dos mais experientes políticos do país. A chave para entender esta trajetória talvez esteja na citação do escritor João Guimarães Rosa, que Dilma escolheu para seu discurso de posse, em 1º de janeiro. No romance "Grande Sertão: Veredas", ela foi buscar o seguinte trecho:

"O correr da vida embaralha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem".

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O voo da Fênix

Por João Rocha

A crença da Fênix, uma ave lendária, existiu em vários povos da antiguidade, como gregos, egipcios e chineses. Segundo a mitologia,, quando morria, entrava em auto combustão e, passado algum tempo, renascia e alçava voo das própias cinzas. Em todas as mitologias o significado é preservado: a perpetuação, a ressurreição, sem nunca ter fim.

Tem certos políticos que se acham perpétuos como a Fênix, não percebem que políticos também tem prazo de validade e tentam a ressureição.

Ao longo da caminhada, vi, li e ouvi sobre políticos que tentaram renascer das cinzas. Poucos conseguiram. 

Em Caraguatatuba, em 2008, tivemos alguns exemplos de políticos que tentaram, mas não alçaram voo. Para 2012, provavelmente haverão novas tentativas . Vamos aguardar.

Obs: tem gente nova buscando espaço.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Os Desinformadores de opinião.

Estranho, alguns blogs da cidade que fazem enquetes e se auto proclamam transparentes ou tiram os mesmos de circulação quando percebem que o resultado não os agradam ou mudam na maior naturalidade o resultado dos mesmos. Quanta credibilidade hein, se dizem formadores de opinião. O povo não é bobo não....estamos de olho.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

SOLUÇÃO TUCANA PARA O CRACK: TROCAR O ENDEREÇO DO INFERNO

Fonte: Carta Maior


"Você prefere tratar um câncer localizado? Ou com ele espalhado por todo o corpo? É isso o que estamos fazendo: espalhando o câncer". (frase de um policial mobilizado pela dupla Kassab/Alckmin em mais uma 'operação definitiva' contra a Cracolândia, em SP; repressão a usuários da droga concentrados na região da Luz gera fuga para outros bairros e ruas adjacentes da capital. Folha de SP;05-01. Em 2009, Carta Maior publicou um ensaio fotográfico sobre o desafio da Cracolândia, abordando os dois lados do problema --o dos moradores e o dos usuários; a dupla Serra & Kassab então, prometia resolver 'de vez' o problema.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Um conto de Natal.

Este deve ser o conto de natal de nossos tempos. Os dois meninos foram catar material reciclável no lixão de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Uma das máquinas empurrou a massa de detritos, para fazer espaço – e os soterrou. Um deles, mais ágil, conseguiu escapar. Maikon Correa de Andrade, de nove anos, ficou sob o lixo, e seu corpo foi encontrado muitas horas depois pelos bombeiros.

Maikon deve ser um dos milhares de máicons que receberam esse nome em homenagem a Michael Jakson, porque é assim que alguns ouvidos registram o nome do ídolo. Um dia, a mãe de Maikon deve ter sonhado destino de riqueza e de glória para o filho, e, nessa esperança, dado ao recém-nascido o nome de uma estrela. Maikon não sabia cantar, não sabia dançar – e talvez nem soubesse catar alguma coisa que prestasse no meio do lixo. Ele poderia ter pisado em uma agulha de seringa e se ter contaminado de alguma doença fatal, como já ocorreu a muitos. Mas poderia ter encontrado alguma coisa ainda precariamente servível, como um brinquedo jogado fora. Ou, apenas, teria recolhido restos de metal, fios de cobre, coisas de estanho e chumbo, para serem vendidos a intermediários, e destinados à reciclagem. Se Maikon conseguiu alguma coisa, não a tinha em suas mãos, rijas depois de tantas horas já mortas.

A morte de Maikon é um conto de Natal, sem a ternura dos relatos de Dickens ou de Mark Twain – mas é também a parábola negra do novo liberalismo triunfante. Somos uma sociedade que se dedica a produzir lixo.

As mercadorias que chegam ao mercado são, quase todas elas, lixo. Começamos com a embalagem – e essa civilização pode ser considerada a “civilização da embalagem” – tanto mais inútil quanto mais sofisticada. A essência da mercadologia – ou do marketing, se preferirmos – é a embalagem, trate-se de manteiga ou de candidatos a cargos eletivos; trate-se de hospitais ou de calistas. Todos os produtos, que a embalagem embeleza, são também lixo em sursis: concebidos para durar pouco. A idéia da reciclagem, fora a dos metais, é recente. Trata-se de um escamoteio da consciência, a de que o meio ambiente pode ser preservado com esse expediente esperto do capitalismo.

O mundo produziria menos lixo, se a idéia do lucro não prevalecesse sobre a idéia da vida. Assim, é o próprio capitalismo, em sua essência, que deve ser discutido. A mesma desrazão que produz o lixo material, produz o que sua lógica considera o lixo humano – os seres descartáveis que o senso estético e prático burguês rejeita. Os pobres são seres instrumentais, como as ferramentas que enferrujam, e, uma vez sem serventia, pelo uso e pelo tempo, devem ser jogadas fora. Sua reciclagem se faz nos filhos, que podem ser usados.

Maikon foi sepultado no lixo em que buscava a sobrevivência antes que cumprisse o destino do pai e, provavelmente, do avô. Morrendo tão cedo, frustrou o destino que provavelmente o esperava. Nada mais natural que Maikon, que morava em um bairro miserável de Campo Grande – ironicamente batizado com o nome do primeiro bispo e arcebispo da cidade, Dom Antonio Barbosa – se misturasse, aos nove anos, com os resíduos dos bairros ricos.

Mas, e se Maikon não tivesse ido ao lixão nesses dias entre o Natal e o Ano Novo, quando há presépios toscos mesmo nas casas pobres, e quando se celebra a vinda de Cristo e o início de mais uma volta da Terra em torno do Sol – o que poderia ocorrer em seu futuro? Como outros meninos, não muitos, mas alguns, ele talvez viesse a driblar o destino, crescer e deixar uma forte presença no mundo. Não era de se esperar - mesmo com a tentativa desnecessária dos evangelistas em lhe conferir progênie divina e ancestralidade nobre - que aquele menino nascido em uma gruta de Belém, viesse a dividir o mundo em duas eras. Afinal, ele, nascido na estrada, era de Nazaré – e se dizia, em seu tempo, que de Nazaré nada chegava de bom a Jerusalém.

Mesmo com o estranho nome de Maikon, o menino de Campo Grande era ainda um enigma, quando morreu sufocado pela sujeira da cidade rica.

Toda criança encerra, em si mesma, a dialética do futuro. Maikon poderia vir a ser um traficante de fronteira, ou um grande homem, nas artes ou na ciência. É nesse profundo mistério que se sepultou seu destino. O corpo, resgatado do lixo, voltou ao barro de que todos nós viemos, ricos e pobres, orgulhosos uns, humilhados outros.

Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976